Introdução
O manuscrito hoje conhecido como “Evangelho de Judas” data (após testes científicos) entre 220 e 340 d.c. Este documento ficou durante mais de 1.500 anos numa caverna em Al-Minya, uma região desértica do Egito; foi descoberto entre 1970 e 1980, mas só em 1983, um mercador de antiguidades tentou, sem sucesso, vender o achado a pesquisadores norte-americanos. Mais tarde, o manuscrito ficou no cofre de um banco em Long Island, Nova York (EUA).
Somente no ano 2000 foi comprado pela antiquaria suíça Frieda Nussberger-Chacos; a National Geographic entrou em cena em 2004 com a proposta de ajudar a financiar a autenticação, restauração e tradução do texto em troca dos direitos de publicação. Com a ajuda de especialistas em copta e restauração de documentos antigos e tecnologia de ponta, após 5 anos de trabalho foi possível restaurar de 90 a 95% do texto.
Foi necessário juntar mais de mil fragmentos de papiro, resultantes do manuseio inadequado do material desde sua descoberta na década de 70. A restauração foi confiada à fundação suíça Maecenas em fevereiro de 2001, Depois de restaurados, os fólios foram cobertos com vidro.
Assim, as páginas puderam ser fotografadas, transcritas e traduzidas. O trabalho de tradução foi confiado a uma equipe de coptólogos dirigida pelo professor Rodolphe Kasser, especialista em manuscritos, da Universidade de Genebra, o professor Kasser foi auxiliado pela restauradora de papiros Florence Darbre e pelo especialista em copta dialectal Gregor Wurst, da Universidade de Augsburg (Alemanha).
O Conteúdo
Existe muita especulação quanto ao conteúdo do Evangelho de Judas, existem até aqueles que afirmam que agora a ‘verdade’ foi encontrada, vejamos então os principais pontos do manuscrito.
O Evangelho de Judas começa assim: “O relato secreto da revelação que Jesus fez em conversa com Judas Iscariotes ao longo de uma semana, três dias antes de celebrar a Páscoa.”
Logo a seguir, aparece um relato do ministério terreno de Jesus: “Quando Jesus apareceu na Terra, ele realizou milagres e grandes maravilhas para a salvação da humanidade. E, visto que alguns [andaram] no caminho da justiça, ao passo que outros andaram em suas transgressões, foram chamados os doze discípulos. Ele começou a falar com eles a respeito dos mistérios que ultrapassam este mundo e que teriam lugar nos tempos do fim. Muitas vezes, ele não aparecia a seus discípulos como ele próprio, mas se apresentava a eles como uma criança.”
As supostas palavras de Jesus que mais chamaram a atenção aparecem num contexto bastante fragmentário, como se pode ver na transcrição a seguir:
“Judas disse a Jesus: Escuta, o que farão aqueles que foram batizados em teu nome? Jesus disse: Em verdade, eu [te] digo, esse batismo […] meu nome [– há uma lacuna de mais ou menos nove linhas — ] a mim. Em verdade, [eu] te digo, Judas, [aqueles que] oferecem sacrifícios a Saklas […] Deus [ — lacuna de três linhas — ] tudo que é mau. Mas tu irás superar a todos eles. Porque irás sacrificar o homem que me veste.”
O texto segue por mais algumas páginas e tem uma conclusão abrupta, ou seja, que não tem nexo com o que precede, veja a seguir:
“Os sumo sacerdotes murmuraram porque [ele] havia entrado no quarto de hóspedes para orar. Mas alguns escribas estavam ali, observando-o cuidadosamente, para prendê-lo enquanto orava, pois tinham medo do povo, visto que todos o consideravam um profeta. Eles se aproximaram de Judas e lhe disseram: Que estás fazendo aqui? Tu és um discípulo de Jesus. Judas respondeu a eles, assim como eles queriam. E ele recebeu algum dinheiro e o entregou a eles.”
Fica evidente que, neste apócrifo, que Judas é o discípulo a quem Jesus contou tudo sobre si e sua missão. Longe de ser o mau e corrupto seguidor de Jesus, Judas aparece aqui como amigo íntimo. Ele o entregou às autoridades, porque Jesus queria que ele fizesse isso. Além do mais, Judas era o único capaz de compreender os ensinamentos de Jesus e recebeu uma revelação secreta, bem ao gosto dos gnósticos que elaboraram esse documento.
A afirmação a respeito do “homem que veste Jesus” revela uma tendência gnóstica ou platônica, estranha ao contexto judaico em que Jesus viveu: o corpo era apenas um invólucro externo. A traição, sob esse aspecto, foi um favor que Judas prestou a Jesus, pois deu início ao processo pelo qual Jesus se libertaria da matéria na qual se achava preso.
A importância histórica
O Evangelho de Judas é a mais significativa descoberta de texto não bíblico dos últimos 60 anos. Na verdade, porém, é apenas mais um dos tantos (mais de 30) Evangelhos apócrifos que foram escritos a partir do segundo século.
Esses Evangelhos apócrifos, muitos dos quais seguem uma linha gnóstica, pressupõem a existência dos Evangelhos canônicos e tratam de preencher as “lacunas” que estes deixaram.
Um Evangelho desses é uma obra de ficção, que não representa nenhuma ameaça aos fundamentos do Cristianismo. Tem seu valor histórico, mas não para a história de Jesus e seus discípulos ou para o Cristianismo do primeiro século. Amplia isto sim, nosso conhecimento das crenças gnósticas daquele tempo. Deixa claro que essas pessoas julgavam que a salvação só era possível através da gnose, um conhecimento secreto transmitido por Jesus.
A cruz de Cristo não lhes interessava, muito menos a ressurreição. Isso explica por que o Evangelho de Judas termina no momento em que Jesus é entregue às autoridades.
Sobre o ato da traição de Judas
A existência do Evangelho de Judas havia sido comentada pelo primeiro bispo de Lyon, Irineu, que o denunciou em um texto contra as heresias na metade do século II. Irineu também falou das seitas gnósticas, cuja crença era baseada no princípio que o mundo material é imperfeito, tendo sido criado não por um Deus Supremo e sim por uma inteligência criadora inferior a este.
Além de Irineu, Epifânio, bispo de Salamina, também argumentou sobre a existência desse manuscrito no ano de 375 dc. Quanto ao ato de Judas, que Irineu descreve como “o mistério da traição”, os Evangelhos deixam claro que ele o fez por dinheiro (Mt 26.14-15), fica evidente que Jesus não foi apanhado de surpresa (Lc 22.22; Jo 13.21).
E se, por um lado, o ato de Judas era necessário – pois, se Jesus tivesse tido uma morte natural, a salvação não teria sido realizada – também se pode afirmar que não era absolutamente necessário que Judas o fizesse.
Como disse Jesus: “o Filho do Homem vai morrer da maneira como dizem as Escrituras Sagradas; mas ai daquele que está traindo o Filho do Homem! Seria melhor para ele nunca ter nascido!” (Mt 26.24). Permanece, portanto, o “mistério da traição”.
E nada, nem mesmo um Evangelho apócrifo, consegue apagar esse “ai” proferido por Jesus. Também este foi registrado, como diria Paulo, “para advertência nossa” (1Co 10.11).
Por: Dr. Vilson Schols (Consultor de tradução da Sociedade Bíblica do Brasil)
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